Quando Caninos Brancos viu Weedon Scott aproximar-se, o pêlo eriçou-se e ele rosnou para preveni-lo de que não se submeteria ao castigo. Tinham-se passado vinte e quatro horas, desde que rasgara com uma dentada a mão que aparecia agora envolta numa ligadura e suspensa do peito, para evitar um maior derramamento de sangue. O animal sabia, pela experiência que lhe dera o passado, que os castigos eram, por vezes, adiados e concluiu que agora acontecera isso mesmo. Não poderia ser de outra maneira. Cometera o que para ele constituía um sacrilégio, enterrara as presas na carne sagrada de um deus e de um deus branco e superior ainda por cima. Esperava-o alguma terrível punição. O deus sentou-se a pouca distância, e Caninos Brancos não viu perigo algum nisso. Quando os deuses castigavam, faziam-no de pé. De resto este deus não trazia qualquer pau nem arma de fogo. Além disso, ele estava solto, nenhuma corrente nem vara o prendia, poderia pôr-se a salvo, enquanto o deus se levantava. Entretanto, esperaria e veria. O deus permaneceu quieto, sem fazer qualquer movimento, e os rosnados do cão foram baixando até se transformarem num resmungo e acabarem por cessar completamente. Então o deus falou, e ao som da sua voz, o pêlo eriçou-se no pescoço de Caninos Brancos, e o rosnado nasceu-lhe outra vez na garganta. Scott, porém, não fez nenhum gesto hostil e continuou a falar calmamente. Durante algum tempo os rosnados do cão estabeleceram uma correspondência ritmada com a voz do homem. Mas a conversa do deus parecia interminável. Dirigia-se a Caninos Brancos, num tom que este nunca ouvira de ninguém. Falava suave e carinhosamente, com bondade, e, fosse como fosse, tranqüilizava o animal. Contra vontade, ignorando os avisos insistentes do seu instinto, Caninos Brancos começou a confiar naquele deus. Transmitia-lhe uma sensação de segurança, que não se coadunava com a experiência adquirida no seu trato com os homens. Muito tempo depois, o deus levantou-se e entrou na cabana. Caninos Brancos examinou-o apreensivamente quando ele tornou a sair. Não trazia nem chicote, nem pau nem arma. Tão pouco a mão ferida estava atrás das costas, escondendo qualquer coisa. Sentou-se, como anteriormente, no mesmo lugar, a pouca distância e mostrou-lhe um pequeno pedaço de carne. Caninos Brancos espetou as orelhas e examinou-o, desconfiado, procurando olhar ao mesmo tempo para a carne e para o deus, alerta a qualquer gesto, o corpo tenso e pronto para fugir de um salto, ao primeiro sinal de hostilidade. O castigo tardava. O deus limitava-se a segurar perto do seu nariz o pedaço de carne. E nesta o animal não conseguia descobrir nada suspeito. Mas Caninos Brancos continuava a desconfiar e, embora a carne lhe fosse oferecida com pequenos impulsos convidativos da mão, recusava-se a tocar-lhe. Os deuses eram muito espertos, e nunca se sabia que habilidosa perfídia se esconderia por trás daquele pedaço de carne, aparentemente inofensivo. Nas suas experiências passadas, especialmente quando lidava com os índios, carne e castigo estavam muitas vezes desastrosamente relacionados. Por fim, o deus atirou a carne para a neve, aos pés de Caninos Brancos. Este farejou-a cuidadosamente, mas sem olhar para ela. Entretanto, mantinha os olhos fixos no deus. Nada aconteceu. Abocanhou a carne e engoliu-a. Nada aconteceu ainda. O deus ofereceu-lhe outro pedaço de carne. De novo se recusou a aceitá-la da sua mão, e novamente ela lhe foi atirada. Isto repetiu-se algumas vezes. Mas, a certa altura, o deus recusou-se a atirá-la. Conservou-a na mão, estendendo-a com gesto firme. A carne era boa, e Caninos Brancos tinha fome. Pouco a pouco, com cautelas infinitas, foi-se aproximando da mão. Jamais despregou os olhos do deus, avançando com a cabeça para diante, as orelhas deitadas para trás e o pêlo eriçando-se e encapelando-se involuntariamente no pescoço.. Isto foi acompanhado de um surdo rosnado, à laia de aviso de que com ele não brincava. Comeu a carne, e nada aconteceu. Pedaço a pedaço, comeu-a toda, até que acabou, e nada aconteceu. O castigo decerto ficara adiado. Lambeu os beiços e esperou. O deus continuou a falar. Na sua voz havia bondade - uma coisa que Caninos Brancos desconhecia por completo.. E dentro dele nasceram sentimentos que nunca experimentara. Havia uma espécie de vaga satisfação, como se alguém tivesse provido a uma das suas mais prementes necessidades, como se acabasse de preencher-se um vazio na sua existência. Depois sentiu de novo o aguilhão do instinto e o aviso das experiências passadas. Os deuses eram todo-poderosos e conheciam maneiras insuspeitadas de atingir os seus fins. Ah, era o que pensava! Aí vinha a mão do deus, hábil em magoar, avançando para ele, descendo sobre a sua cabeça. Mas o deus continuou a falar. A sua voz era branda e suave. Apesar da mão ameaçadora, a voz inspirava confiança. E apesar da voz suave, a mão inspirava-lhe receio. Em Caninos Brancos debatiam-se então os mais opostos sentimentos e cegos instintos. Parecia-lhe estar prestes a rebentar, por efeito daquela terrível luta de forças contraditórias que tentavam dominá-lo. Assumiu uma atitude de compromisso. Rosnou, eriçou o pêlo e deitou as orelhas para trás. Mas nem mordeu, nem fugiu. A mão descia. Aproximava-se cada vez mais. Tocou as extremidades do seu pêlo eriçado. Ele agachou-se. A mão seguiu, fazendo maior pressão sobre o seu corpo. Encolhido, quase tremendo, conseguiu, no entanto, dominar-se. Era um tormento, esta mão que se atrevia a tocá-lo, violando o seu instinto. Não podia esquecer de um momento para o outro o mal que lhe haviam infligido as mãos dos homens. Mas era a vontade do deus, e ele esforçava-se por submeter-se. A mão ergueu-se e desceu de novo, num movimento acariciador. Isto continuou, mas de cada vez que a mão se erguia, o pêlo eriçava-se debaixo dela. E de cada vez que a mão descia, as orelhas deitavam-se para trás, e da garganta subia-lhe um rosnado surdo. Caninos Brancos rosnava e tornava a rosnar, num aviso insistente. Prevenia, por este meio, que estava preparado para retribuir qualquer castigo que porventura lhe infligissem. Nunca se sabia quando se revelaria o objetivo final do deus. A qualquer momento aquela voz suave e tranqüilizante podia erguer-se num rugido de cólera, aquela mão meiga e acariciadora podia transformar-se num torno, que o agarrasse impiedosamente e lhe administrasse uma punição. Mas o deus continuou a falar suavemente, e a mão a erguer-se e a baixar-se dando-lhe pancadinhas que nada tinham de hostil. Caninos Brancos achava-se como que flutuando entre dois sentimentos opostos, situação desagradável para os seus instintos, porque se opunha ao livre exercício da sua vontade. E, no entanto, fisicamente, aquilo não era doloroso. Pelo contrário, achava-o agradável. As suaves pancadas foram, pouco a pouco, substituídas por outra forma de carícia - Scott começou a coçar-lhe a base das orelhas - e o prazer físico aumentou ainda mais. Contudo, sentia ainda medo e continuava em guarda, na expectativa de imprevisíveis aleivosias, sofrendo e gozando alternadamente, conforme era dominado por um ou por outro sentimento. - Diabos me levem! Matt achava-se à porta da cabana, de mangas arregaçadas, com uma bacia de água suja de lavar pratos nas mãos. Detivera-se no ato de despejar o recipiente, ao ver Weedon Scott acariciando Caninos Brancos. No instante preciso em que a voz quebrou o silêncio, o animal deu um salto para trás, rosnando ferozmente. Matt observava o amo com evidente desaprovação. - Se me permite dar a minha opinião, Sr. Scott, tomarei a liberdade de lhe dizer que o senhor é um louco chapado. Weedon Scott sorriu com ar superior, pôs-se de pé e encaminhou-se para Caninos Brancos. Falou-lhe bondosamente, mas durante pouco tempo. Depois, lentamente, estendeu a mão e pousou-a sobre a cabeça, recomeçando as festas interrompidas. O animal consentiu, mantendo o olhar fito, desconfiadamente, não no homem que o acariciava, mas no que estava na soleira da porta. - O senhor pode ser um perito de minas de primeira categoria, concordo, concordo - disse o condutor de trenó em tom de oráculo mas perdeu a melhor carreira que podia deparar-se na vida quando, ainda rapaz, não fugiu de casa e ingressou numa companhia de circo. Caninos Brancos rosnou ao ouvir-lhe a voz, mas desta vez não fugiu da mão que lhe acariciava a cabeça e o pescoço, com movimentos longos e suaves. Foi o princípio do fim, o termo da sua antiga vida e do reinado do ódio. Avizinhava-se uma nova era, incompreensivelmente mais bela, que exigia muito tato e uma paciência infinita da parte de Weedon Scott, e que representava para Caninos Brancos nada menos que uma revolução. Tinha que aprender a ignorar todos os impulsos do instinto e da razão, desprezar a experiência, considerar a própria vida uma mentira. Na vida que até então conhecera, não só não havia lugar para muito do que agora fazia, como tudo o encaminhava numa direção oposta àquela em que presentemente se deixava arrastar. Em resumo, bem vistas as coisas, tinha de orientar-se num mundo novo muito mais vasto do que aquele que conhecia na ocasião em que abandonara voluntariamente a vida selvagem e aceitara Castor Cinzento como seu senhor. Então não passava de um cachorro, de um barro maleável e ainda informe, pronto a deixar-se modelar pelo dedo do destino. Mas agora era diferente. O dedo do destino havia executado já o seu trabalho, e na perfeição. Havia-o modelado e endurecido, até o tornar no Lobo Lutador, feroz e implacável, odiento e odiado. Agora a transformação constituía como um refluxo de toda a sua existência anterior e isto quando já não possuía a plasticidade da juventude, quando as suas fibras se tinham tornado duras e nodosas, quando a sua urdidura e trama haviam adquirido uma contextura adamantina, insensível e inflexível, quando o seu espírito ganhara a rijeza do ferro e todos os seus instintos e axiomas se haviam cristalizado em regras fixas, precauções, antipatias e desejos. E contudo, na trilha que agora seguia, era de novo o dedo do destino que o compelia, o aguilhoava a suavizar aquilo que se tornara agreste, a remodelá-lo, tornando-o melhor. E neste caso o dedo do destino resumia-se a Weedon Scott. Penetrara até às raízes da natureza de Caninos Brancos e, suavemente, ia despertando potências adormecidas e quase mortas. Uma dessas potências era o amor. Tomou o lugar da dedicação o sentimento mais elevado que ele anteriormente experimentara, nas suas relações com os deuses. Mas o amor não surgiu de um dia para o outro. Começou por ser apenas dedicação, sentimento que, lentamente, se foi transformando. Caninos Brancos não fugiu, embora lhe permitissem viver em liberdade, porque gostava deste novo deus. A vida que ali se lhe proporcionava era, sem dúvida, melhor do que a que levara na jaula de "Beleza" Smith, e ele tinha necessidade de um deus que o dominasse. A sua dependência do homem ficara marcada nele, naquele dia em que correra atrás de Castor Cinzento e rastejara até aos seus pés para receber o castigo que esperava. Esta marca fora reavivada e de modo indelével, quando pela segunda vez voltara ao convívio dos homens, quando, terminado o longo período de fome, tornara a haver peixe na aldeia de Castor Cinzento. E, assim, porque precisava de um deus, e porque preferia Weedon Scott a "Beleza" Smith, Caninos Brancos não foi embora. Em sinal de fidelidade, tomou o cargo de guardar a propriedade do seu dono. Rondava em volta da habitação, enquanto os cães dormiam, e o primeiro visitante noturno da cabana teve de o manter em respeito com um pau até Weedon Scott vir em seu socorro. Mas Caninos Brancos depressa aprendeu a diferençar os ladrões das pessoas honestas, a avaliar as suas intenções pela maneira de andar. Deixava em paz quem chegava com passo firme e ia direto à porta da cabana embora observasse atentamente o visitante até a porta se abrir e o dono o receber. Mas quem caminhava cautelosamente, fazendo rodeios, espreitando e procurando passar despercebido - esse não beneficiava da menor indulgência e Caninos Brancos obrigava-o logo a pôr-se em fuga, apressada e ignominiosamente. Weedon Scott empreendera a tarefa de redimir Caninos Brancos, ou melhor, redimir a humanidade do mal que fizera a Caninos Brancos. Era uma questão de princípios e de consciência. Estava convencido de que o mal que lhe haviam causado constituía uma dívida que o homem devia pagar. Por isso tratava o Lobo Lutador com especial carinho e não passava um só dia sem o animar e o acariciar demoradamente. Desconfiado e hostil a princípio, Caninos Brancos acabou por gostar de ser afagado. Mas houve uma coisa de que ele nunca foi capaz de se curar: o costume de rosnar. Desde que começavam a afagá-lo até que terminavam, rosnava incessantemente. Havia, porém, nesses rosnados um tom diferente, algo que uma pessoa estranha não conseguiria perceber, quem os ouvisse consideraria apenas que se tratava de uma manifestação de selvajaria atroz e horrível. Tão áspera estava, contudo, a garganta do animal, tão habituada a emitir durante anos aqueles sons ferozes - desde que, ainda cachorro, pela primeira vez assim manifestara o seu desagrado que agora era impossível suavizá-los para exprimir toda a doçura dos seus novos sentimentos. Apesar disso, o ouvido e a afeição de Weedon Scott perceberam aquela nota nova, quase apagada no mar de ferocidade - nota que não passava de fraquíssima sugestão de um murmúrio de contentamento, que ninguém, a não ser ele, conseguia distinguir. À medida que passavam os dias, acelerava-se a evolução do novo afeto de Caninos Brancos. Ele próprio começou a tomar consciência dessa mudança, embora desconhecesse o que fosse o amor. Este manifestava-se como um aviso no seu ser vazio, faminto, doloroso, que ansiava ser preenchido. Era uma dor e um desassossego, que só acalmava com a presença do novo deus, então, o amor constituía para ele um prazer, uma satisfação selvagem e penetrante. Mas, quando estava longe do deus, a dor e o desassossego voltavam, o vazio surgia de novo como uma opressão, uma fome que o roia e tornava a roer incessantemente. Caninos Brancos ia se encontrando a si próprio. Apesar da maturidade já atingida e da rigidez selvagem dos moldes que o haviam formado, na sua natureza verificava-se uma expansão, dentro dele brotavam sentimentos desconhecidos e impulsos estranhos. O seu velho código de conduta modificava-se. Antigamente procurava as coisas agradáveis e evitava as desagradáveis e de acordo com isso pautara todos os seus atos. Mas agora era diferente. Devido aos sentimentos novos que existiam dentro de si escolhia muitas vezes o que lhe causava aborrecimento, por amor do seu deus. E assim, de madrugada, em vez de andar na vagabundice e na pilhagem, ou de ficar deitado num canto abrigado, conservava-se durante horas na pouco agradável soleira da cabana, à espera de o ver surgir. À noite, quando o deus regressava a casa, Caninos Brancos abandonava o buraco quente que escavara na neve para dormir, e ia receber os afagos amigáveis dos dedos e a palavra de saudação. A carne, até a própria carne, trocava pela presença do seu deus, para receber uma carícia dele ou para acompanhá-lo à cidade. Agora conhecia o amor. Algo semelhante a uma sonda caíra nas profundezas do seu ser, onde nunca qualquer afeição tinha chegado, e de lá, em resposta, viera aquela coisa nova - o amor. Retribuía aquilo que lhe davam. Aquele era um verdadeiro deus, um deus-amor, um deus afetuoso e radiante, a cuja luz toda a sua natureza se expandia, tal como uma flor desabrocha ao sol. Mas Caninos Brancos não mostrava os seus sentimentos. Era muito velho e endurecido para adotar novas formas de expressão - com extraordinário autodomínio, arraigado ao seu isolamento, habituado desde longa data à sua reserva, à indiferença e à melancolia. Nunca ladrara em toda a sua vida, e era agora incapaz de aprender a ladrar para dar as boas-vindas ao seu deus quando o visse aproximar-se. Nunca exteriorizava o seu amor de maneira louca ou extravagante. Jamais corria ao encontro do dono. Esperava à distância, mas esperava sempre, estava sempre lá. O seu amor podia classificar-se de adoração, adoração silenciosa, muda e inarticulada. Só o seu olhar, que seguia incessantemente todos os movimentos do dono, exprimia todo o seu amor. E também, às vezes, quando o seu deus o olhava e lhe falava, a sua atitude traía um embaraço desajeitado provocado pela luta do amor por se exprimir e a sua incapacidade física de fazê-lo. Aprendeu a adaptar-se de muitas maneiras a um novo gênero de vida. Compreendeu que devia deixar em paz os cães do seu dono, e assim fez, mas antes o impulso dominador da sua natureza levou-o a demonstrar-lhes violentamente a sua superioridade, exigindo-lhes o reconhecimento do seu posto de chefia. Depois disto, não teve mais problemas com eles. Abriam-lhe caminho, quando ele se aproximava ou se afastava, e, quando manifestava a sua vontade, obedeciam-lhe. Da mesma forma, acabou por tolerar Matt - uma coisa que pertencia ao seu deus. Scott raramente lhe dava de comer. Era a Matt que isso competia - fazia parte das suas atribuições. No entanto, Caninos Brancos adivinhava que o que comia pertencia ao seu dono e que só por sua ordem é que o outro o alimentava. Foi Matt quem se encarregou de arreá-lo para o atrelar ao trenó, juntamente com os outros cães. Mas não o conseguiu. Tornou-se necessário que o próprio Weedon Scott o substituísse e fizesse compreender a Caninos Brancos que era sua vontade que se deixasse guiar por Matt, tal como faziam os outros cães. Os trenós do Mackenzie distinguiam-se dos do Klondike por terem patins por baixo, e diferente era também o método de guiar os cães. Não os colocavam em forma de leque. Puxavam em fila, uns atrás dos outros, com tirante duplo. E aqui, no Klondike, o chefe o era na verdadeira acepção do termo. Punham nesse lugar o mais apto e forte de todos, ao qual os restantes tinham de obedecer. Que Caninos Brancos chegaria a conquistar em breve esse posto, era inevitável. Não se satisfazia com menos, como Matt aprendeu depois de muitos incômodos e problemas. Foi ele próprio que, por fim, se colocou na frente, e Matt, depois de feita a experiência, embora vociferando, reconheceu que ele merecia o lugar. Apesar de puxar o trenó durante o dia, Caninos Brancos não descurava a guarda da propriedade do seu dono, à noite. Estava, assim, em serviço todo o tempo, sempre vigilante e fiel, o mais valioso de todos os cães. - Tenho de confessar - disse Matt um dia - que o senhor fez um grande negócio quando comprou este cão. Enganou lindamente o "Beleza" Smith, depois de lhe ter pregado um bom par de socos. Os olhos cinzentos de Weedon Scott brilharam de cólera, e ele murmurou selvagemente: - Aquele animal! No fim da Primavera, Caninos Brancos sofreu um grande desgosto. Sem qualquer aviso, o dono desapareceu. Bem, avisos tinha havido, mas o animal, sem experiência destas coisas, não compreendera o que significava o acondicionamento da bagagem. Só mais tarde relacionou os dois fatos ao recordar os preparativos que haviam antecedido a ausência, mas na ocasião não suspeitou de nada. Na primeira noite esperou o regresso do dono. À meia-noite o vento gelado que soprava levou-o a procurar refúgio nos fundos da cabana. Ali se conservou, apenas meio adormecido, sempre à escuta do som de passos familiares. Mas, às duas horas da manhã, a sua ansiedade levou-o à fria soleira da porta da frente, onde se enroscou à espera. Mas o dono não veio. De manhã, a porta se abriu, e Matt saiu. Caninos Brancos olhou-o ansiosamente. Mas não havia modo de averiguar aquilo que desejava. Os dias iam passando, e o dono não aparecia. Caninos Brancos, que nunca estivera doente em toda a sua vida, adoeceu, e tão gravemente, que Matt se viu por fim obrigado a metê-lo dentro da cabana. Além disso, quando escreveu ao patrão, acrescentou um post-scriptum a respeito dele. Ao ler a carta em Cirele City, depararam-se a Weedon Scott estas palavras: "Aquele maldito lobo não quer trabalhar Nem comer. Já não lhe restam forças nenhumas. Agora qualquer cão o domina. Quer saber o que é feito de si, e eu não sei como o hei de dizer. É capaz de morrer." Era como Matt dizia. Caninos Brancos deixara de comer, achava-se apático e até permitia que qualquer cão da matilha o mordesse. Na cabana, passava todo o tempo deitado no chão, perto do fogo, sem interesse pela comida, por Matt ou pela vida. Tanto fazia Matt falar-lhe carinhosamente como gritar-lhe, limitava-se a virar os olhos tristes para ele, depois inclinava de novo a cabeça para a sua posição habitual entre as patas. E uma noite, enquanto Matt lia, mexendo os lábios e pronunciando a meia-voz as palavras, ficou mudo de surpresa ao ouvir um fraco queixume de Caninos Brancos. Tinha-se levantado nas patas e, de orelhas espetadas na direção da porta, escutava atentamente. Momentos depois Matt ouviu passos. A porta abriu-se e surgiu Weedon Scott. Os dois homens apertaram-se as mãos, e o recém-vindo olhou em volta. - Onde está o lobo? Descobriu-o logo, no lugar onde costumava estar deitado, próximo do fogão. Não correra ao seu encontro como é costume dos cães. Deixara-se ficar de pé, observando e à espera. - Diabos me levem! - exclamou Matt. - Olhe como ele abana a cauda. Weedon Scott avançou em direção ao animal, ao mesmo tempo em que o chamava. Caninos Brancos aproximou-se, sem ser de um salto, mas muito rapidamente. Parecia despertar do seu ensimesmamento, mas, ao chegar junto do dono, o seu olhar adquiriu uma expressão estranha. Qualquer coisa, um sentimento imenso e incomunicável acudia-lhe aos olhos, como uma luz, e brilhava com raro fulgor. - Ele nunca olhou para mim dessa maneira, durante todo o tempo em que o senhor esteve ausente - comentou Matt. Weedon Scott não o ouvia. Agachado sobre os calcanhares e em frente de Caninos Brancos, fazia-lhe festas, coçava-lhe a base das orelhas, dava-lhe pancadinhas carinhosas ao longo do pescoço, batia-lhe ao de leve na espinha com as pontas dos dedos. E o animal respondia com rosnados de satisfação, mais pronunciados que nunca. Mas não era tudo. A sua alegria, o grande amor que sentia e que sempre procurava manifestar encontrou um novo modo de expressão. De súbito avançou a cabeça e aninhou-a entre o braço e o corpo do dono. E com ela ali metida, e toda oculta com exceção das orelhas, o animal, agora sem rosnar, continuou a forcejar suavemente para melhor se aconchegar. Os olhos dos dois homens encontraram-se. Os de Scott estavam brilhantes. - Caramba! - exclamou Matt em voz assombrada. Instantes depois, quando se recompôs, acrescentou: - Eu sempre teimei que este lobo era um cão. Olhe para ele! Com o regresso do dono, o restabelecimento de Caninos Brancos foi rápido. Passou duas noites e um dia na cabana. Depois saiu. Os cães, que haviam esquecido as suas antigas proezas e apenas recordavam a sua recente fraqueza e doença, mal o viram transpor o limiar da cabana atiraram-se a ele. - Já vai ver como eles cantam - murmurou Matt, divertido, parado à porta a observar. - Dê-lhes com força, lobo! Dê-lhes com força! Caninos Brancos não precisava ser encorajado. O regresso do dono bastara. O sangue corria-lhe nas veias, de novo corajoso e indômito. Lutou por prazer, encontrando nisso tudo uma expressão de quanto sentia e não sabia exteriorizar de outra forma. O fim só podia ser um: a matilha foi depressa dispersa, numa derrota ignominiosa, e apenas depois de escurecer é que os cães regressaram cautelosamente, um a um, significando com humildade e brandura a sua submissão a Caninos Brancos. O gesto de aconchegar-se ao braço do dono, repetia-o agora com freqüência. Era o máximo que podia fazer. Extremamente cioso, mostrara sempre particular empenho em conservar bem livre a sua cabeça. Nunca gostara que lhe tocassem. O seu instinto selvagem, o medo da dor e das ciladas haviam dado origem aos impulsos de pânico que o levavam a evitar contatos. Era esse mesmo instinto que lhe lembrava a conveniência de manter livre a sua cabeça. E agora, ao aconchegar-se de encontro ao dono, fazia-o deliberadamente para se colocar a si próprio numa posição de abandono completo. Tratava-se de uma demonstração de confiança absoluta, de rendição total, como se dissesse: "Coloco-me em suas mãos. Faça de mim o que quiser." Uma noite, pouco depois do regresso de Scott, estavam este e Matt sentados jogando uma partida de cartas, antes de irem deitar. "Cinqüenta e dois, cinqüenta e quatro e mais um par faz seis", contava Matt, quando ouviram lá fora um grito e barulho de rosnados. Olharam um para o outro e começaram a levantar-se. - O lobo mordeu alguém - disse Matt. Um grito de terror e angústia os fez se apressarem. - Traga luz - gritou Scott, dando um salto para fora. Matt seguiu-o com uma candeia e, à luz dela, viram um homem caído na neve. Tinha os braços dobrados um sobre o outro, em cima do rosto e da garganta. Tentava desta maneira proteger-se dos dentes de Caninos Brancos. E tinha necessidade disso. O animal, enfurecido, procurava feri-lo nos pontos mais vulneráveis. Desde os ombros até aos pulsos, as mangas do casaco, da camisa de flanela azul e da camisola interior estavam feitas em pedaços, e por entre estes corria, em abundância, o sangue dos braços terrivelmente dilacerados. Os dois homens viram tudo isto, ao primeiro relance. Weedon Scott agarrou imediatamente Caninos Brancos pelo pescoço e arrastou-o para longe. O animal lutava e rosnava, mas não fez qualquer tentativa para morder, e aquietou-se rapidamente, a uma ordem enérgica do dono. Matt ajudou o homem a levantar-se. Este, quando se ergueu, baixou os braços que tinha cruzados, deixando a descoberto a cara brutal de "Beleza" Smith. O condutor de trenó largou-o precipitadamente, num gesto semelhante ao de um homem que tivesse tocado em fogo. "Beleza" Smith pestanejou, à luz da lanterna, e olhou em volta. Quando avistou Caninos Brancos, o terror estampou-se no rosto. Ao mesmo tempo, Matt reparou em dois objetos caídos sobre a neve. Aproximou a lanterna e indicou-os ao patrão, com o pé. Era uma corrente de aço e um sólido cacete. Weedon Scott viu e acenou com a cabeça. Ninguém pronunciou uma palavra. Matt pousou a mão no ombro de "Beleza" Smith e o fez voltar para a direita. Não foi preciso dizer nada. O homem tratou de se afastar. Entretanto, Scott fazia festas a Caninos Brancos e falava com ele. - Tentou roubar-te, hein? E você não o consentiu! Bom, bom, ele se enganou, não é verdade? - Deve ter pensado que era o diabo que andava à solta - riu o condutor de trenó. Caninos Brancos, ainda furioso e eriçado, rosnava e tornava a rosnar, mas o pêlo foi se acamando pouco a pouco e da garganta passou a sair-lhe apenas um rouco rosnado que parecia longínquo, embora persistente. |