O primeiro assunto de que tratou a senhora Murdstone, depois do dia da cerimónia fúnebre, quando a luz entrou livremente pelas janelas da casa, foi despedir a Peggotty, prevenindoa com um mês de antecipação. Embora a rapariga tivesse pouca vontade de continuar ao serviço, creio que ela teria ficado por amizade para comigo, de preferência a aceitar o melhor lugar do mundo. Explicoume então que nos teríamos de separar e ambos nos apoquentámos com essa perspectiva. Quanto a mim e ao meu futuro, nem uma palavra me disseram. Quanto gostariam eles de me mandar também embora, avisandome trinta dias antes, como fizeram à criada! Um dia reuni toda a minha coragem e perguntei à senhora Murdstone quando voltava para o internato; respondeume secamente ser de opinião de que eu não voltava a Salem. Não apurei mais nada. Sentiame preocupado com o que fariam de mim, e Peggotty não o estava menos, mas nem ela nem eu obtivemos qualquer esclarecimento a este respeito. Produzirase na minha situação certa mudança que, se bem me descarregasse de um grande peso na actualidade, teria podido, se eu fosse capaz de reflectir nisso atentamente, inquietarme ainda mais quanto ao futuro. Eis o facto. As obrigações que me haviam imposto quase tinham cessado de todo. Nem exigiam que me conservasse no meu triste posto da sala; e até a senhora Murdstone, com expressão carrancuda, me fazia sinal para que me afastasse, quando me ia sentar. Deixavamme ir, sempre que quisesse, para o lado de Peggotty, e nem sequer me perguntavam para onde me dirigia. De começo, tremia todos os dias pensando se o senhor Murdstone iria tomar conta da minha educação, ou que a ela se consagrasse a sua irmã. Mas depressa compreendi que esses temores eram infundados e que o mais que podia recear era que me deixassem ao abandono. Julgo que esta descoberta me não impressionou muito nessa ocasião. Eu andava ainda atordoado com o desgosto da morte da minha mãe, e como que insensível a todas as considerações secundárias. Lembrome de que meditei, nesses momentos, no caso, e conclui ser possível que eu não aprendesse mais e que ninguém se ocupasse de mim; que me transformasse num pobre diabo melancólico, votado a uma vida de ociosidade na aldeia. Como poderia escapar a esse destino? Partindo para longe, como um herói de romance, a fim de procurar fortuna algures? Isto, porém, eram só visões passageiras, sonhos de acordado, que se desenhavam ou inscreviam vagamente nas paredes do meu quarto e, dissipandose, só deixavam a nudez da cal. - Peggotty - disselhe um dia, em tom pensativo e em voz baixa, quando aquecia as mãos à lareira da cozinha. - Peggotty, o senhor Murdstone ainda gosta menos de mim do que antigamente. Se pudesse deixar de me ver, ficaria satisfeitíssimo. - Deve ser do desgosto - volveu a criada, afagandome o cabelo. - Eu também sinto esse desgosto, Peggotty. Se acreditasse que era só isso, não me importava. Mas não é, é outra coisa. - Como o sabe, menino? - inquiriu ela, após um silêncio. - O desgosto dele é outro, muito diferente. Está triste neste momento, sentado ao pé do lume, com a irmã. Mas se eu entrasse, ele sentiria logo outra coisa. - O quê? - Cólera - respondi, imitando involuntariamente o seu torvo carregar de cenho. - Se estivesse apenas triste, não me olharia como olha. Eu só tenho tristeza, e creio que isso me torna mais amável. Peggotty ficou um momento calada, e eu, também silencioso, entretiveme a aquecer as mãos. - Menino Davy - disse ela por fim. - Que é, Peggotty? - Tentei, por todas as formas possíveis e impossíveis, encontrar aqui em Blunderstone um lugar que me conviesse; mas é coisa que não existe, meu querido. - E que tencionas fazer, Peggotty? - indaguei preocupado. - Aonde vais tentar a fortuna? - Suponho que serei obrigada a viver em Yarmouth - respondeu ela. - Se fosses um pouco mais longe, a verdade é que te perderia para sempre - observei, animandome um tanto. - Mas, aí, verteei uma vez por outra. Não estarás no fim do mundo, pareceme... - Pelo contrário, e graças a Deus! - exclamou Peggotty, entusiasmada. - Enquanto o menino estiver aqui, não se passará uma semana sem que eu venha visitálo. Esta promessa desanuvioume o espírito. Mas ainda havia mais, pois a rapariga continuou: - Olhe, menino Davy, eu vou passar, primeiramente, uns quinze dias com o meu irmão, o tempo necessário para assentar na minha vida futura e descansar um bocadinho. E como não precisam de si neste momento, pensei que talvez deixassem que me acompanhasse a Yarmouth. A parte o meu desejo de estar de bem com as pessoas que me rodeavam, este projecto era a coisa que mais me poderia despertar um sentimento de prazer naquela ocasião. A ideia de voltar a ter à minha roda aqueles rostos francos, iluminados por um sorriso de bom acolhimento, de reencontrar a calma e a doçura das manhãs de domingo, em que os sinos tocam, de tornar a ver os navios emergindo vagamente da bruma e de vaguear com a Emily em procura de conchinhas na praia - estas imagens tranquilizavamme o coração. Mas cedo me assaltaram dúvidas quanto à realização do plano. A senhora Murdstone consentiria nele? Todavia esta inquietação não tardou em abrandar: Peggotty, com uma ousadia que me espantou, fez imediatamente a proposta, quando a irmã do meu padrasto irrompeu na cozinha para a sua ronda nocturna. - David não fará nada de bom nessa terra - disse a senhora Murdstone, examinando um frasco de conservas. - Mas também, aqui, não será melhor, e a preguiça é a mãe de todos os vícios. Peggotty ia já replicar, mas contevese por amor do seu menino e ficou muda. - Hum! - continuou a solteirona, sempre ocupada com a inspecção. - O que mais importa é que o senhor Murdstone não seja incomodado. Pareceme que o mais acertado é autorizar essa ida. Agradecilhe, sem manifestar muita alegria, com medo que isso a levasse a retirar o consentimento. Não me coibi de pensar que esta atitude era prudente, tanto mais que a vi olharme por cima do bocal do frasco com tanta acidez como se os olhos dela tivessem absorvido todo o vinagre da conserva. Fosse como fosse, a permissão estava dada, e mantevese. Terminado que foi o prazo de um mês, preparámonos ambos para partir, eu e Peggotty. Barkis entrou para vir buscar as malas da criada. Jamais o vira transpor os umbrais da casa. Ao colocar aos ombros o baú de Peggotty, lançoume um olhar que tinha certo significado, se é que o rosto de Barkis alguma vez exprimiu qualquer coisa. Naturalmente que a rapariga estava triste com a Ideia de deixar uma residência que fora sua durante tantos anos e onde formara as duas afeições mais sólidas da sua existência: a que me votava e a que dedicara à minha mãe. Nessa manhã ela havia ido ao cemitério. Quando tomou assento na carroça, levou o lenço aos olhos para os enxugar. Enquanto a viu nessa posição, o carroceiro não deu o menor sinal de vida; estava no mesmo lugar e na mesma atitude do costume, como um boneco empalhado. Mas quando Peggotty começou a olhar ao redor e a falar comigo, ele meneou a cabeça e fez uma carantonha que queria dizer um sorriso. A quem o dirigia, e porquê? Não faço a mínima ideia. - Lindo dia, senhor Barkis! - disse eu, por delicadeza. - Não está mau - confirmou o homem, que em geral era muito reservado e não se comprometia com facilidade. - Actualmente a Peggotty goza de perfeita saúde - acrescentei, a fim de lhe dar prazer. - Ah, sim? - volveu Barkis. Reflectiu uns segundos, deitoulhe uma olhadela e inquiriu: - Está confortável, na verdade? Peggotty largou a rir e respondeu afirmativamente. - Tem a certeza? - insistiu ele, deslizando no banco para lhe dar uma cotovelada. - Tem a certeza? Hem? E, a cada pergunta, Barkis aproximavase mais e movia o cotovelo, de tal modo que, por fim, estávamos acurralados a um canto e eu tão apertado que me sentia desfalecer. Como a criada lhe chamasse a atenção para o meu constrangimento, Barkis deixoume logo um pouco de espaço e foise afastando gradualmente. Mas não pude impedirme de considerar que ele descobrira um meio excelente de exprimir os seus sentimentos, um processo original e pitoresco, que o dispensava de fazer as despesas da conversa. Por algum tempo ainda soltou risadinhas de satisfação, até que, virandose outra vez para Peggotty, repetiu: «Com que então sentese confortável!», e tornou a apertarse contra nós, ao ponto de quase me tolher a respiração. Serviuse mais vezes dessa manobra, fazendo sempre a mesma pergunta e com idêntico resultado. Acabei por me levantar, quando o via abeirarse de nós, e invoquei o pretexto da paisagem; assim acheime mais à vontade. Barkis teve a amabilidade de parar a carroça diante de uma estalagem, para nos oferecer cerveja e carneiro assado. Enquanto Peggotty bebia, o homem foi tomado de novo desejo de contacto e esteve prestes a sufocála. Mas, ao retomarmos a jornada, várias circunstâncias se opuseram a que ele prosseguisse nas suas galantarias: o pavimento da estrada estava em tais condições que não nos deixou tempo para pensarmos noutra coisa. O senhor Peggotty e o sobrinho Ham esperavamnos no lugar do costume. Receberamme, e à minha criada, da maneira mais afectuosa, e apertaram a mão de Barkis (que, de chapéu desabado para a nuca e de ar distraído, sorria com um embaraço que me pareceu comunicarselhe também às pernas). O senhor Peggotty e o Ham pegaram cada qual numa das malas da irmã e da tia e nessa ocasião o carroceiro fezme sinal para que me aproximasse dele. - Escute, menino. A coisa caminha bem! Olheio no rosto e repliquei com um acento que procurei tornar profundo: - Ah! - Não foi só aquilo - ajuntou ele em tom confidencial. - A coisa caminha bem! - Ah! - repeti. - Sabe quem «suspirava», hem? Fiz com a cabeça um sinal afirmativo. - Pois caminha muito bem - rematou Barkis, apertando a minha mão. - Sou seu amigo. Graças a si, a coisa caminhou muito bem. E vai de bem a melhor. Quando queria exprimirse com clareza, Barkis era tão enigmático que eu poderia contemplálo durante uma hora sem que a sua expressão me esclarecesse mais do que o mostrador de um relógio parado. Mas Peggotty chamava por mim, e, de caminho, perguntoume o que é que ele dissera. Informeia de que a sua frase predilecta fora: «a coisa vai muito bem». - Não me admira, vindo desse descarado - comentou ela. - Mas não importa. Menino Davy, que diria se a sua Peggotty pensasse em casarse? - Ora... suponho que gostarias de mim como tens gostado sempre - respondi após um momento de reflexão. Com grande pasmo dos transeuntes e dos membros da família, que nos acompanhavam, a corajosa rapariga não resistiu a beijarme ali mesmo, protestando a sua afeição inalterável. --Então, menino, que diria a uma coisa dessas? - Se pensasse em casar... com o senhor Barkis? - Nem mais nem menos. - Acho excelente ideia, pois nesse caso terias à disposição cavalo e carroça para ires visitarme... - Ah, que este menino possui bom senso! - murmurou ela. - É nisso mesmo que eu penso há um mês. É nisso mesmo que eu penso há um mês. É verdade, creio que seria a minha independência, sem contar que trabalharia de melhor vontade, em minha casa, do que na casa alheia. Sei lá para que prestaria agora, se servisse em casa dos outros! Demais a mais ficaria perto do sítio em que repousa a minha defunta querida - acrescentou Peggotty com ar sonhador - e podia lá ir de vez em quando. E, ao vir a minha vez, talvez ficasse enterrada não muito longe dela. Durante algum tempo não dissemos nada. - Mas não pensarei mais nisso se a ideia o contraria, menino Davy. Nem que leiam os banhos cem vezes na igreja, eu num caso desses não tomaria marido! - Olha bem para mim, Peggotty, e vê se não estou contente, se não desejo isso com tanta vontade! Com efeito, desejavao de todo o meu coração. - Pois bem, menino - retorquiu ela, apertandome nos braços. - Tenho pensado maduramente no assunto. Mas tornarei a pensar e falarei ao meu irmão. Entretanto fica o segredo entre nós. Barkis é homem sério, pessoa simples, e eu espero cumprir os meus deveres de esposa. Veremos se a coisa caminha bem... Esta citação, tirada dos discursos de Barkis, divertiunos tanto que começámos a rir. íamos pois de excelente humor quando chegámos à vista da residência do senhor Peggotty, a qual não mudara muito, salvo que me pareceu mais pequena. A senhora Gummidge esperavanos à porta, como se não houvesse saído dali desde a última vez. Tudo no interior estava na mesma, até o vaso azul do meu quarto, guarnecido de plantas marinhas. Fui dar uma volta pelo alpendre, onde as mesmas lagostas, lagostins e caranguejos, possuídas do mesmo desejo de se agarrarem a tudo, pareciam sempre aglomeradas no mesmo canto. Quanto, porém, à Emily - nada. Por isso perguntei ao senhor Peggotty onde se encontrava a pequena. - Está na escola - informou ele, limpando o suor da testa, que o esforço de carregar a mala da irmã lhe produzia. - Dentro de vinte ninutos estará de volta - ajuntou, consultando o relógio. - Sentimos a sua falta, durante este tempo. A senhora Gummidge gemeu. - Animese, mulher! - disse o senhor Peggotty. - Sofro com isso mais do que ninguém. Sou uma pobre criatura só no mundo, e ela é a única pessoa que tem paciência de me aturar. A senhora Gummidge, sempre a gemer e a abanar a cabeça, foi activar o lume, e o senhor Peggotty circunvagou por nós a vista e murmurou: «o velho», do que eu conclui que o humor da sua hóspeda não melhorara desde a minha última visita. A casa achavase - ou pelo menos devia acharse - tão agradável como outrora. Contudo não me produziu a mesma impressão. Sentiame um pouco descoroçoado. Talvez fosse devido à ausência de Emily. Sabia por que caminho ela vinha e não tardei a sair ao seu encontro, tomando pelo atalho. Passado pouco tempo apareceu ao longe um vulto, e eu reconheci Emily, sempre pequenina de estatura, se bem que tivesse crescido alguma coisa. Mas, quando se aproximou e eu lhe vi os olhos mais azuis do que nunca, o rosto cheio de covinhas e toda a sua pessoa bela e jovial, experimentei uma sensação tão estranha que fui tentado a fingir que a não reconhecia e a passar sempre, como se me interessassse apenas algo no horizonte. Se não me engano, continuei a proceder assim no resto da minha vida. A pequena é que não fez caso disso. Descobriume logo e começou então a correr e a rir, sem se deter junto de mim. Fuilhe no encalço, mas Emily correu tão depressa que só a alcancei já perto de casa. - Com que então és tu? - disse ela. - Bem sabias que eu estava cá, Emily. Tentei beijála, mas a pequena levou as mãos aos lábios rubros, declarando que já neto era criança, e fugiu para dentro de casa, rindo mais do que nunca. Parecia deliciada com o facto de me arreliar, e esta mudança espantoume deveras. Estava a mesa posta para o chá, com o nosso baú colocado como assento no lugar costumado; mas, em vez de vir sentarse junto de mim, Emily foi fazer companhia à resmungona da senhora Gummidge. E, quando o senhor Peggotty lhe perguntou qual o motivo, ela espalhou os cabelos pela cara, a fim de se esconder, e limitouse a rir. - É muito mimada - comentou ele, afagandoa com a mão grossa. - Ora se é! - exclamou Ham. - É, sim, senhor Davy. Olhavaa risonho, com um misto de admiração e amor, o que o tornava corado como um pêro. De facto, toda a gente mimava a pequena Emily, em especial o tio Peggotty, de quem ela fazia gatosapato. Tal era a minha opinião, pelo menos quando a vi tão desembaraçada. Tinha, porém, natureza afectuosa e tão doce, umas maneiras tão hábeis em conciliar a astúcia com a timidez, que eu me senti mais do que nunca subjugado. Mostrouse ao mesmo tempo sensível pelos infortúnios alheios. Quando nós todos estávamos em círculo de roda da lareira, depois do chá, o senhor Peggotty aludiu à dor por que eu acabava de passar, as lágrimas afloraram aos olhos de Emily e ela contemploume com tanta bondade que fiquei para sempre reconhecido. - Também aqui temos uma órfãzinha - disse o dono da casa, passandolhe os dedos nos caracóis do cabelo. Depois virouse para Ham, a quem deu uma palmada no peito, e acrescentou: - E este também é órfão, embora não pareça. - Se o tivesse como tutor, senhor Peggotty - ripostei - julgo que não me sentiria órfão. - Muito bem lembrado, senhor Davy - bradou Ham, entusiasmado. - Muito bem! E retribuiu a palmada ao tio, enquanto Emily se levantava para o beijar. - E o seu amigo como passa? - perguntoume o pescador. - Steerforth? - sugeri. - Ah, é este o nome - exclamou o senhor Peggotty, falando com Ham. - Já me havia esquecido. - Chamavalhe Rudderford - observou o sobrinho com uma risada. - Pois seja, mas Steer ou Rudder é tudo o mesmo. Como vai ele, senhor Davy? - Estava óptimo quando parti - repliquei. - Esse é que é um amigo! - disse o senhor Peggotty, estendendo o cachimbo. - Amigo às direitas. Raios me comam se não dá gosto de ver! - E é bonito, não é? - atalhei, porque aqueles elogios me enchiam o coração. - Bonito? Até parece um... um... palavra que não sei explicar. Tem um ar tão decidido! - Realmente, é esse o seu carácter - asseverei. - É bravo como um leão e não se imagina quanto é leal. - Suponho - murmurou o pescador, olhando através do fumo do cachimbo - que no tocante a aprender em livros ninguém lhe leva a palma. - Tem razão - acentuei, encantado. - Sabe tudo. É uma inteligência portentosa. - Ora aí está um amigo! - repetiu o senhor Peggotty, agitando gravemente a cabeça. - Nada parece serlhe difícil - disse por meu turno. - Bastalhe um olhar para uma lição para ficar a sabêla. E é o melhor jogador de criquete que jamais houve. Facilmente nos vence, assim como no jogo das damas. O senhor Peggotty tornou a oscilar a cabeça, como se quisesse confirmar estes acertos. - Fala tão bem que é capaz de convencer toda a gente. E que diria o senhor se o ouvisse cantar? Novamente Peggotty meneou a cabeça, querendo significar que não punha em dúvida. - E, além disso, é um rapaz tão generoso, belo e nobre - continuei, arrastado pelo meu tema preferido - que nem se lhe podem dar todos os adjectivos que merece. Sei que nunca lhe agradecerei suficientemente a protecção tão generosa que ele me concedeu a mim que era tão pequeno e estudante de uma classe tão abaixo da sua! Prossegui neste teor, inflamandome a pouco e pouco, quando o meu olhar se poisou no rosto de Emily, apoiado sobre a tábua da mesa; a pequena escutavame com a mais profunda atenção, sem respirar, de pupilas brilhantes como jóias e faces cobertas de rubor. Estava tão séria e tão bonita que eu me detive, admirado; todos a observaram nesse instante e começaram a rir. - Emily é como eu - disse a minha criada. - Gostaria de o ver. A pequena perturbouse, ao notar que a examinávamos. Baixou a cabeça e corou ainda mais. Depois, relanceandonos e percebendo que ainda a olhávamos (eu seria capaz de ficar horas inteiras a vêla), fugiu dali e só regressou na ocasião de ir para a cama. Eu dormia no meu antigo leito, à popa do barco, e o vento varria o plaino, exactamente como outrora. Mas não podia coibirme de pensar, agora, que ele gemia por aqueles que já não eram deste mundo; e, em vez de imaginar, como antes, que o mar poderia subir e arrastar o barco, sonhava com outro mar que galgara a minha vida e subvertera o meu lar feliz. Enquanto a queixa do vento e da água sussurrava aos meus ouvidos, eu pedia a Deus que me tornasse homem para casar com a Emily. E, nesta súplica, adormeci cheio de amor. Os dias passavam quase como anteriormente, apenas com a diferença (mas diferença grande) de que raramente passeávamos na praia. Emily tinha de estudar as suas lições, tinha tarefas caseiras e, grande parte do dia, eu não lhe punha a vista em cima. Sabia eu, porém, que mesmo noutras circunstâncias não vaguearíamos como outrora. Embora cheia de caprichos infantis, ela era uma mulherzinha, muito mais do que eu esperava. Davame a impressão de que se distanciara bastante de mim em pouco mais de um ano. Estimavame, é certo, mas troçavame também e arreliavame. Quando eu ia ao seu encontro, ela tomava por outro caminho e riame na cara quando eu regressava a casa, desiludido. O melhor momento para mim era esse em que Emily trabalhava na soleira da porta; eu sentavame nos degraus de madeira e lialhe qualquer coisa. Hoje tenho a impressão de que nunca vi mais luminosas tardes de Abril, de jamais haver contemplado uma criaturinha mais radiante do que essa que estava à entrada do velho barcoresidência, e de jamais ter admirado um céu como aquele, nem um mar semelhante, nem iguais navios vogando ao longe no esplendor de uma atmosfera de oiro. Logo na primeira noite Barkis apareceu, extremamente perturbado. Trazia um lenço com laranjas, dobrado pelos quatro cantos, e, como não houvesse feito qualquer referência a esse objecto, supuseram, depois da partida dele, que o deixara por esquecimento; Ham correu na sua peugada, para lho entregar, e, à volta, informounos que se tratava de uma oferta para a Peggotty. Desde então veio todas as noites, sempre à mesma hora, acompanhado de um embrulho a que nunca aludia e que abandonava atrás da porta. Estas dádivas afectuosas eram do género mais estranho e variado. Lembrome, entre outras, de meio alqueire de batatas, dois brincos de azeviche, cebolas, uma caixa de dominó, um canário na sua gaiola, um presunto fumado, pés de porco e uma almofadinha para pregar alfinetes. Tanto quanto me recordo, Barkis fazia a corte à minha criada de uma forma particularíssima. Raras vezes abria a boca; ficava sentado perto do fogão, na mesma atitude que tomava quando em cima da carroça, e olhava fixamente para a Peggotty, que estava do outro lado da mesa. Certa noite, creio que inspirado pelo amor, apoderouse do coto da vela com que a rapariga costumava encerar a linha de coser, meteuo no bolso do colete e levouo consigo. Daí por diante a sua maior satisfação consistia em apresentar a Peggotty, quando esta precisava, o coto de vela pegado ao forro da algibeira e meio derretido; logo que ela acabava de se servir, metiao outra vez no bolso. Tinha o ar de pessoa feliz e não se sentia obrigado a falar. Mesmo quando levava a rapariga a passear na praia, limitavase a perguntarlhe, de tempos a tempos, se estava confortável. Não me esqueço dos ataques de riso que ela tinha, por mais de meia hora, com a cara escondida no avental, depois da partida do seu apaixonado. A verdade é que nos divertíamos todos menos mal, salvo essa triste senhora Gumniidge, que devia ter sido, ao que parece, cortejada de maneira semelhante, e a quem isto fazia constantemente evocar a memória do «velho». Aproximavase o fim das minhas férias quando me participaram que a Peggotty e o senhor Barkis iam sair por um dia e que nós devíamos acompanhálos, eu e a Emily. Quase tive uma insónia, na perspectiva desse imenso prazer: estar um dia inteiro com Emily. Levantámonos cedo e, mal acabáramos o primeiro almoço, apareceu Barkis ao longe, conduzindo uma carruagem de duas rodas e de quatro lugares; vinha ao encontro do objecto das suas inclinações. Este - ou seja, Peggotty - vestia, como de costume, o seu traje de luto, simples e asseado. Mas Barkis estava resplandecente no seu casaco novo, azul. O alfaiate deixarao tão folgado que o comprimento das mangas tornava inúteis as luvas, ainda que o tempo fosse dos mais frios. Quanto à gola, era tão alta que lhe levantava o cabelo para o topo do crânio. Os botões, enormes, cintilavam. Calças castanhas escuras e colete de camurça acabavam por fazer do senhor Barkis, aos meus olhos, um prodígio de respeitabilidade. No meio da pressa que se estabelecera, percebemos que o senhor Peggotty tinha preparado um sapato velho para ser atirado aos noivos, quando estes partissem, e que significava boa sorte. Ofereceuo, pois, à senhora Gummidge. - Não, Daniel, mais vale que seja outrem a lançálo - disse ela, falando com o pescador. - Sou apenas uma pobre criatura, sozinha no mundo, e tudo o que me lembra isto causame contrariedades. - Ora, adeus! - respondeu o senhor Peggotty. - Pegue nisso e atire! - Não, Daniel - insistiu a senhora Gummidge, abanando a cabeça e gemendo. - Se eu fosse menos sensível, não digo que o não fizesse. O Daniel não é tão sensível como eu. Não tem contrariedades e não é uma contrariedade para os outros. Mais vale que o lance com a sua própria mão. Mas nessa altura a Peggotty, que beijara já toda a gente derredor, com grande precipitação, gritou da carruagem onde nos achávamos (eu e Emily lado a lado) que competia à senhora Gummidge atirar o sapato velho. De modo que ela acabou por o fazer, mas custame dizer que se desempenhou da incumbência de tal maneira que lançou como que um balde de água fria na alegria geral; logo a seguir desfezse em lágrimas e caiu desamparada nos braços de Ham, declarando saber muito bem que era um fardo para todos e que seria preferível levála já para o asilo. Esta ideia afigurouseme sensata e eu achei que Ham se devia desempenhar imediatamente do encargo. Em todo o caso, partimos e o nosso primeiro cuidado foi parar defronte de uma igreja. O senhor Barkis amarrou o cavalo às grades do portão e entrou com a Peggotty, deixandome só com Emily na carruagem. Aproveitei o ensejo para passar o braço em volta da cintura da pequena e lhe propor que nos tornássemos muito amigos. Ela aceitou a sugestão e permitiume que a beijasse: e eu fui ao ponto de lhe declarar que não poderia amar nunca outra mulher e que estava disposto a derramar o sangue de quem aspirasse ao seu afecto. Como Emily achou aquilo engraçado! Com muita gravidade, fingiuse infinitamente mais velha e ajuizada do que eu, e tratoume, essa feiticeira, de «piegas». Em seguida desatou a rir tão contente que esqueci o desgosto de ter ouvido dos seus lábios aquela classificação tão desdenhosa, e todo me entreguei ao gosto de a contemplar. Barkis e a Peggotty ficaram muito tempo na igreja, mas saíram por fim, e nós tomámos o caminho do campo. Barkis voltouse para mim e disse, piscando o olho (observese, de passagem que o não julgava capaz de semelhante liberdade): - Que nome tinha ela quando partimos? - Clara Peggotty - respondi. - E agora, que nome tem? - Não é o mesmo? - Não. É Clara Peggotty Barkis - exclamou com uma gargalhada que fez tremer a carruagem. Em suma, estavam casados. Por isso haviam entrado na igreja. Peggotty decidira que tudo se passaria discretamente; o sacristão fora a única testemunha. Ficou um tanto escandalizada por ouvir o marido anunciar daquela forma a sua união, e não deixou de me apertar contra si para provar que o seu afecto não diminuía. Daí a pouco, já mais reconfortada, declarouse satisfeita com o sucedido. Parámos numa estalagem onde éramos esperados e em que nos serviram um bom almoço. O dia passouse agradavelmente. Se Peggotty se casasse todos os dias, desde há dez anos, não teria um ar tão à vontade. Não se modificara nada. Saí com ela e com Emily, para dar uma volta antes do chá, enquanto Barkis fumava filosoficamente, contente, suponho, de pensar na sua felicidade. Em todo o caso despertouselhe o apetite; embora tivesse comido muita carne de porco e hortaliças, e consumido uma galinha ou duas, foi necessário darlhe ainda toucinho frio ao chá, o que ele fez desaparecer sem qualquer dificuldade. Tenho reflectido neste casamento e acho sempre que foi deveras curioso, inocente e original. Ao cair da noite tomámos de novo a carruagem e voltámos tranquilamente, admirando as estrelas, que foram o assunto da conversa. Era eu, sobretudo, quem dava as explicações e assim abria ao senhor Barkis horizontes novos. Disselhe tudo quanto sabia; mas ele teria acreditado em mais, se a fantasia me levasse a inventar, tanto o seu respeito pela minha inteligência. Até o ouvi declarar à mulher, dessa vez, que eu era um Róscio(1) menino. *1. Alusão ao prodigioso actor romano Quintus Roscius Gallus. Depois de termos esgotado esse tema, ou melhor, quando esgotei as faculdades intelectuais de Barkis, a pequena Emily envolveuse comigo num cobertor velho que nos abrigou no resto da viagem. Ah, quanto eu a amava! Que ventura, pensei, se fôssemos casados, e vivêssemos não importa onde, no meio de árvores, no campo, sem nunca envelhecer, sem aprender mais nada, sempre crianças, sempre errando de mão dada, ao sol, pelos prados floridos, descansando à noite a cabeça no musgo, para dormir de um sono só, calmo e puro, até ao momento em que, mortos, os pássaros nos enterrassem! Eis o género de imagem desprovida de qualquer realidade terrena, iluminada pelo resplendor da nossa inocência e tão imprecisa como as estrelas longínquas, que nos povoavam os sonhos em todo o trajecto. Agradame pensar que no enlace de Peggotty havia dois corações tão cândidos como o da pequena Emily e o meu; agradame pensar que os Cupidos e as Graças tomaram essas formas imateriais no seu modesto cortejo. Chegámos a boas horas, nessa noite, ao velho barco; e, à porta, despedimonos do senhor e da senhora Barkis, que seguiam para a sua nova morada, ternamente unidos. Compreendi então, pela primeira vez, que perdera a minha Peggotty; e, ao deitarme, experimentaria grande desgosto se não tivesse a povoarme o espírito a imagem de Emily, que dormia sob o mesmo tecto que eu. O pescador e o sobrinho sabiam tão bem como eu quais eram os meus pensamentos. À ceia, mostraramse risonhos para ver se me afugentavam as ideias tristes. Emily veio sentarse a meu lado pela primeira e última vez durante a minha permanência ali. Foi uma forma extraordinária de pôr remate a esse dia extraordinário. A maré era à noite. Pouco tempo depois de nos deitarmos, o senhor Peggotty e Ham foram para a pesca. Eu sentiame cheio de bravura ao pensar que ficava só nessa casa solitária para proteger a pequena Emily e a senhora Gummidge. Desejaria que um leão ou uma serpente nos atacasse, ou qualquer monstro mal intencionado. Daria cabo dele e cobrirmeia de glória. Mas nenhum animal deste género passeou nessa noite na praia de Yarmouth e eu supri o feito heróico sonhando com dragões até de manhã. Nessa altura Peggotty voltou e, como de costume, bateume à janela, tudo como se o carroceiro Barkis fosse apenas um sonho. Depois do primeiro almoço, ela levoume ao seu novo domicílio, que era pequeno mas bonito. Entre todos os bens móveis que aí figuravam, o que maior impressão me fez foi sem dúvida, na sala, uma velha secretária feita não sei de que madeira escura, cuja parte superior se abria e, uma vez abaixada, servia de mesa de escrever. Dentro havia uma edição inquarto do Livro dos Mártires de Fox. Descobri esse volume precioso (de que não lembro uma só palavra) e mergulhei logo na sua leitura. Após esse dia nunca mais fui a essa casa sem me ajoelhar numa cadeira para abrir o escrínio onde tamanho tesouro se encerrava; em seguida estendia os braços na mesa e devorava de novo aquele texto. Suponho que me atraíam em especial as gravuras numerosas que representavam toda a espécie de atrocidades. Os Mártires e a casa da Peggotty ficaram para sempre associados no meu espírito. Nesse dia despedime do senhor Peggotty, de Ham, da senhora Gummidge e da pequena Emily, e passei a noite na residência da minha antiga criada, num quartinho do sótão (o Livro dos Crocodilos estava no chão, perto da minha cabeça). Esse quarto, dizia Peggotty, era para mim e conservarseia sempre no mesmo estado. - Nova ou velha, querido menino Davy, enquanto eu viver e tiver este tecto, encontráloá a toda a hora ao seu dispor. Ocuparmeei dele todos os dias, como fazia ao seu quarto lá na sua casa; e ainda que o menino vá para a China, pode ter a certeza de que ele ficará sempre limpo e arrumado na sua ausência. No fundo do coração eu sentia a fidelidade sincera da minha Peggotty, e agradecilhe o melhor que pude, isto é, com dificuldade, porque ela me cingia com os braços. Vim na carroça, com o casal Barkis; deixaramme, desgostosos, ao portão da residência, e foi para mim um espectáculo novo ver a carroça afastarse levando Peggotty e deixandome só, sob os velhos ulmeiros, diante da casa onde ninguém me olhava com ternura ou afeição. Caí então num estado de abandono de que não consigo lembrarme sem angústia. Fiquei na maior solidão, longe de qualquer olhar amigo, privado da companhia dos rapazes da minha idade e só a contas com pensamentos sombrios, que ainda parecem enevoar este papel em que escrevo. Quanto não teria eu dado para que me mandassem para o mais severo dos internatos, aprender qualquer coisa, fosse ela qual fosse e em qualquer lugar do mundo! Não antevia, porém, nenhuma mudança na minha situação. Não gostavam de mim e desleixavamme, fria e obstinadamente. Creio que as finanças do senhor Murdstone não iam bem nesse momento, mas este precalço em nada influenciava a minha sorte. Ele não me tolerava, e, pondome de parte, tentava, suponho, afastar a ideia de que eu tinha alguns direitos; e o caso é que o conseguiu. Eu não era precisamente maltratado. Não me batiam, não morria de fome; mas os processos com que me distinguiam jamais se atenuavam: aplicavamnos sistematicamente e sem cólera. Os dias sucediamse aos dias, as semanas às semanas, os meses aos meses, e em casa continuavam a descurarme friamente. Às vezes penso no que teriam feito de mim se eu houvesse adoecido; deixarmeiam deitado no meu quarto solitário para aí deperecer no isolamento habitual, ou alguém me ajudaria a curarme? Quando os irmãos Murdstones estavam em casa, eu tomava as refeições com eles; na sua ausência almoçava e jantava só. Mas, sempre, passava o tempo a vaguear pelas salas e jardim ou na vizinhança, sem que tomassem conta da minha pessoa. Entretanto providenciavam ciosamente para que eu não arranjasse amigos, com medo talvez de que me queixasse a algum deles. Por isso, embora o doutor Chillip me convidasse com frequência a visitálo (era viúvo, perdera anos antes uma esposa loira, que associo na minha memória a uma pelagem pálida de gato mosqueado), raras vezes tinha o gosto de passar a tarde no seu consultório, a ler qualquer livro para mim desconhecido, enquanto o odor de farmácia me chegava às narinas, ou a esmagar qualquer coisa num almofariz, sob a sua direcção complacente. Pela mesma razão e também, sem dúvida, por causa do ódio antigo que lhe votavam, raras vezes me permitiam ir visitar a Peggotty. Fiel à sua promessa, ela vinha verme, ou melhor, concediame uma entrevista a pouca distância dali, uma vez por semana, e nunca chegava de mãos vazias. Mas eu recebia quase sempre uma recusa quando pedia licença para ir a casa dela; se, porém, a obtinha, o que só acontecia com largos intervalos, verificava então coisas curiosas, por exemplo: que o senhor Barkis era um nadinha forreta, ou, como dizia delicadamente a mulher, «um pouco apertado», e que guardava dinheiro num baú debaixo da cama, fingindo no entanto que lá só havia roupa. Era nesse sítio que se ocultava a sua riqueza, com uma modéstia tão teimosa que não seria possível, senão usando qualquer ardil, fazer surgir a mais pequena parcela do tesouro. Para regularizar as suas contas, ao sábado, Peggotty entregavase a maquinações longas e complicadas como a Conspiração da Pólvora contra Jaime I e o Parlamento. Durante este tempo sentia perderemse as poucas esperanças que tinha (no abandono geral a que me entregara) de modificar a minha vida; e que desgraçada ela seria sem os meus velhos livros! Era esta a única consolação. Se me conservei fiel a eles, por seu turno eles me compensaram desse amor. Lios e relios não sei quantas vezes! Agora abeirome de uma época da minha existência de que nunca poderei esquecerme, tanto se me gravou na memória. Ela sempre se me apresentou diante de mim sem sequer ser evocada, como um fantasma que assombrou os meus tempos mais felizes. Certo dia em que saíra e errava pelas imediações, sem fito e sonhador, como o meu género de vida me impusera, encontrei ao virar de uma esquina o senhor Murdstone que passeava com outro cavalheiro. No embaraço que isso provocou, ia cruzarme com eles quando o desconhecido exclamou: - Não é Brooks? - Não, senhor. Sou David Copperfield. - Ora, não me diga. É Brooks - insistiu o homem. - Brooks de Sheffield. Este é que é o seu nome. A estas palavras observeio mais atentamente. A sua maneira de rir recordoume o senhor Quinion, que eu fora visitar em Lowestoft, com o próprio Murdstone, antes... Enfim, adiante, não preciso de lembrar a época. - Que é feito de você, Brooks? Que escola frequenta? - Por enquanto está em casa - disse o meu padrasto. - Não vai ao colégio. Não sei que deva fazer dele. É difícil de dirigir. O seu olhar, esse olhar falso que eu conhecia tão bem, poisouse em mim por instantes. Então Murdstone carregou o cenho e desviou a vista num gesto de aversão. - Pois está um lindo tempo! - comentou o senhor Quinion, olhando para nós ambos, ao que se me afigurou. Houve um silêncio e eu procurei a melhor forma de desembaraçar o ombro da mão de Quinion; mas este disse: - Julgo que continua a ser um rapazinho esperto. Hem, Brooks? - Oh, é esperto de mais - atalhou, impaciente, o senhor Murdstone. - É melhor que o deixes ir. Não gostará que o retenhas. Ouvindo isto, o homem deixoume seguir e eu fui para casa. Voltandome para trás, quando entrava no jardim, vi o senhor Murdstone apoiado ao portão do cemitério e a conversar com o seu amigo. Olhavam ambos para mim e calculei que se ocupavam da minha pessoa. Nessa noite, o senhor Quinion dormiu em nossa casa. Depois do primeiro almoço, no dia seguinte, preparavame para sair da sala quando o senhor Murdstone me chamou. Sentouse gravemente a outra mesa e a irmã instalouse à sua secretária. O senhor Quinion, de mãos nas algibeiras, olhava pela janela. Eu, de pé, observavaos a todos. - David - disse o senhor Murdstone - quando se é novo devese fazer qualquer coisa, e não ser ocioso e vadiar. - Como tu - acrescentou a irmã. - Jane, deixame falar, se fazes favor. Dizia eu, David, que se deve fazer qualquer coisa, quando se é novo, e não andar de braços cruzados. Sobretudo quando se trata de um rapaz do teu génio, que bem precisa ser corrigido e a quem o melhor serviço que se pode prestar será obrigálo ao trabalho, para o disciplinar. - Disso precisa bastante! - comentou a senhora Murdstone. - Tem de ser disciplinado. O irmão lançoulhe um olhar meio de censura meio de aprovação, e prosseguiu: - Creio que sabes, David, que não sou rico. Em todo o caso, participote. Recebeste uma educação esmerada. A educação custa dinheiro, e, ainda que eu o pudesse despender, acho que não haveria vantagem em voltares para o colégio. O que te espera é a luta pela vida e, quanto mais cedo principiares, melhor. No íntimo pensei que isso já tinha eu começado, à minha maneira. O senhor Murdstone continuou: - Já ouviste falar, suponho, dos nossos escritórios... - Os nossos escritórios? - repeti. - Sim, de Murdstone & Grinby, negociantes de vinhos. Eu devia ter dado a impressão de que hesitava, porque ele ajuntou precipitadamente: - Ouviste falar de escritórios, ou negócios, ou caves, ou armazéns, ou algo de semelhante... - Acho que sim, que ouvi falar de vinhos - declarei, lembrandome dos informes vagos que tinha quanto aos recursos dele e da irmã. - Pouco importa - respondeu. - Esse negócio dirigeo o senhor Quinion. Deitei uma olhadela respeitosa ao senhor Quinion, que continuava postado à janela. - O senhor Quinion explicoume que há vários rapazes empregados na casa e não compreende por que motivo tu também não estás lá. - Visto não haver nada em perspectiva para ele... - observou o senhor Quinion em voz baixa, voltando metade do corpo. Murdstone esboçou um gesto de impaciência, quase de cólera, e atalhou: - As condições são estas: ganharás o bastante para o teu sustento e os teus alfinetes. Quanto ao alojamento, pagáloei do meu bolso, assim como à lavadeira. - Até a certa importância que estabeleceremos - acudiu a irmã. - Ocuparnosemos ainda do teu vestuário, pois que não estás apto, por enquanto, a esportular para isso. Irás então para Londres com o senhor Quinion a fim de te estreares na vida, David, por tua conta. - Em suma - acrescentou a senhora Murdstone - ficas instalado na existência e poderás cumprir as tuas obrigações. Compreendi muito bem que se desembaraçavam de mim, mas não me recordo se estava assustado ou contente. Ficara indeciso e oscilava entre dois pólos, sem tocar num nem noutro. Aliás não tinha muito tempo à minha frente, para classificar as ideias, porque o senhor Quinion partia no dia seguinte. Imaginese a minha saída nesse dia: levava o meu chapelinho branco muito usado, com uma fita de crepe pelo luto da minha mãe, casaco preto e calças de belbutina grossa, que a senhora Murdstone devia considerar uma armadura perfeita para me proteger as pernas nessa luta com a vida, que eu ia iniciar. E eisme assim equipado, com tudo o que possuo metido numa mala pequena, sentado, pobre criança só no mundo (como diria a senhora Gummidge) na malaposta que me leva com o senhor Quinion a Yarmouth, onde tomaremos a diligência para Londres. A nossa casa e a igreja diminuem ao longe: o túmulo e a sua árvore ocultamse com as coisas que desfilam diante de nós. Do meu velho largo dos jogos já não se ergue o campanário. O céu está vazio. |